quarta-feira, 27 de agosto de 2008

REGESSAR DA HIBERNAÇÃO!

Desde o dia vinte de Fevereiro do presente ano, que a “estória” que aqui vos vínhamos narrando foi interrompida, digamos até, que entrou em hibernação.
Por esta data Luísa adoecia, podemos dizer hoje, com toda a certeza, que seria a sua doença de morte, pois assim, o sentimos nessa altura e, os meses futuros assim o comprovariam.

Não pode o autor desta despretensiosa novela, assegurar, que alguma vez lhe seja possível recuperar o fio da meada, então interrompida, pois aquela que era a sua grande musa, para a pobre narrativa que aqui vínhamos apresentando, Luísa de seu nome, ausentou-se, e, merece o luto a que tem direito. Talvez superior aos três dias de que gozou o Outro, mas como tudo neste mundo, um dia virá para a sua alforria.

Sentimos no entanto a indispensabilidade de continuação e partilha de alguma cogitação pessoal sobre o mundo que nos abarca, na esperança de, através das palavras que aqui se desamarram, encontrarmos o seu eco. Com disseminação favorável, algumas vezes, outras nem por isso.

Iremos pois, a partir de agora abordar outros temas mais actuais, que, o Como Nasce um Blog, pode esperar, ou talvez, quem sabe, tal como Luísa, tenha partido…

sexta-feira, 25 de abril de 2008

RENDIMENTOS DO CAPITAL GENÉTICO...

(Discurso proferido no dia 25 de Abril de 2008, em representação da Assembleia Municipal de Marvão, na comemoração do dia da Liberdade. Da autoria do neto de Xico Bugalhão e José da Quinta).

Há trinta e quatro anos por esta hora, eu era um rapazinho que tinha feito dezassete anos, há apenas quinze dias. Mas que, porque assim era nesse tempo, já contava com cinco anos de trabalho como trabalhador, por conta de outrem.

No meu país havia uma guerra absurda que levava os jovens para combaterem em África durante dois e três anos, onde alguns morriam e outros ficavam desgraçados para o resto da vida.

No meu país não se podia falar sobre a vida pública, existia um partido único. Não se podia criticar os governantes, porque havia uns “senhores” que prendiam a gente, só pelo simples facto de expressarmos opinião, ou contestarmos os capatazes.

No meu país não havia água canalizada para beber, nem saneamento básico mínimo. As crianças, muitas morriam ao nascer, ou nos primeiros anos de vida e ás vezes as próprias mães para os darem à luz (ou parirem, como diz o povo).
A maioria dos portugueses só comiam carne nos dias de festa, e o leite, para alguns, só lhe conheciam o gosto, através do que bebiam das mamas de suas mães.

No dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, ao levantar-me, como de costume, pelas sete horas da manhã, para iniciar mais um dia de trabalho na oficina de serralharia civil onde trabalhava, ouvi na rádio a notícia que havia um grupo de militares que tinham dado início a um Golpe de Estado.
Soube mais tarde, que desse Golpe, tinha resultado um Programa de Acção, que ficou para a história como o “Programa dos três Dês”:
- Descolonizar;
- Desenvolver;
- Democratizar.

Desse dia, passam agora trinta e quatro anos e cumpriram-se, em minha opinião, dois desses três Dês.
O de Descolonizar, bem para uns, mal para outros a coisa lá se fez. Tarde…mas, não havia outro caminho.

O de Desenvolvimento, apesar dos diferentes pontos de vista, a evolução aconteceu…o país de hoje, com todos os problemas sociais e económicos que nos apoquentam, nada tem a ver com o país de setenta e quatro, do “orgulhosamente sós”. São outros os tempos!

Mas o terceiro D? O de Democratizar?
Será que podemos concluir hoje, que vivemos uma Democracia plena e que os valores e princípios democráticos estão incorporados no dia-a-dia do nosso sistema social?

Reflictamos e questionemos:

- Que raio de democracia é esta, que permite as balbúrdias constantes nas escolas com faltas de respeito e agressões dos discípulos para com os seus mestres?

- Que raio de democracia é esta, que só condena os mais fracos e deixa os poderosos escapar pelas malhas de um sistema de justiça inoperante?

- Que raio de democracia é esta, que num dia faz eleições para escolher os seus representantes e no dia seguinte, os eleitos, são derrubados pelos “barões”, em “feiras de vaidades” vergonhosas?

- Que raio de democracia é esta, que concentra todos os seus recursos no Litoral e abandona, sem solidariedade, os que vivem no interior, só porque são poucos e sem poder para influenciar?

- Que raio de democracia é esta, que permite com frequência a gestores, que um dia são públicos, no dia seguinte são privados e gestores dos negócios, que fizeram quando eram públicos?


- Que raio de democracia é esta, que permite que alguns (os mandantes), trabalhem apenas meia-dúzia de anos e se aposentem com reformas milionárias; enquanto outros, têm que trabalhar até ao dia da morte?

- Que raio de democracia é esta, que persegue os contribuintes de baixos rendimentos, para liquidarem os seu poucos proveitos; e isenta desses deveres, aqueles que têm lucros fabulosos, vivendo à “grande e à francesa”, como descendentes de Junot ou Masséna?

- Que raio de democracia é esta, que cria uma “polícia de guerra” para reprimir os usos e costumes de um povo; e fecha os olhos, à entrada de produtos dos grandes grupos económicos internacionais, alguns bem mais lesivos para a saúde pública que os nossos produtos tradicionais?

- Que raio de democracia é esta, que permite uma comunicação social, sem ética e sem regras, seja o maior poder e que comande a política de um país, trinta e quatro anos após o dia de início do sistema democrático?

Fernando Pessoa, disse um dia: Senhor, falta cumprir-se Portugal…

Também hoje, com propriedade, convém afirmar:
Minhas senhoras e meus senhores FALTA CUMPRIR O D DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL. É URGENTE QUE O FAÇAMOS…

João Bugalhão




quinta-feira, 20 de março de 2008

RENDIMENTOS DO CAPITAL GENÉTICO...

Escrito por Luís Bugalhão


boas tio.

hoje estou com uma daquelas telhas qu'até zóne nozóvidos.

passei a noite às voltas na cama, cheio de saudades do meu pai, cheio de rancor contra a vida que nos prega tantas partidas de morte.

precisava mesmo dele. preciso dele. mas ele não está cá. foi-se, num inverno frio, tornado ainda mais gélido pelo seu desaparecimento.

sabes que sou incréu, e por isso, como não posso falar com o pai chico, falo com a sua memória e com quem dele está mais próximo, na geração acima da minha...

que raio de vida esta...

dei por mim a pensar nas falhas dos neurónios e das sinapses. falhas castradoras de lembranças, de episódios, de estórias. brancas que me envergonham por não conseguir evitá-las.

é que queria mesmo estar com o meu pai!

queria ouvi-lo a dizer-me que '... isso é conversa de chacha.'. queria escutar-lhe as conversas da guerra para onde foi enviado pela vida tão cedo. tão moço. e já tão velho também. queria vê-lo novamente a abraçar a mila e a dizer-lhe '... se me derem um neto, agarro em ti e levanto-te até ao céu!...'. os netos, que a são e eu lhe demos e ele nunca conheceu...

ele que, para muita gente, não passava dum insensível, sem cuidado nas palavras que escolhia para dizer verdades... esse bruto, que também tinha coração de menino. ainda. naquela altura, meses antes de nos deixar, derrotado por um inimigo que nunca lhe mostrou a cara e que ele, por isso, não podia combater. um coração de menino que cedo aprendeu a empedernir a emoção, a desviar a conversa para o sisudo, para não sofrer ainda mais com a injustiça dos que o rodeavam, e só viam rudeza onde havia extrema sensibilidade. e por isso o abraço à mila que, surpreendida, se sentiu apertada e alevantada do chão pelo sogro... no último almoço dos bugalhões, em frente à família toda, em setembro de 1990. bom que a vida lhe tenha dado momentos destes, de libertação dos espartilhos e das capas de duro que vestia para se proteger e para proteger os que amava... mesmo que não lhes parecesse, aos que amava.

se calhar somos todos um pouco assim, os bugalhões. se calhar não estou a falar dele, estou a falar de mim. mas o que eu queria mesmo era falar com ele.

RAI'S PARTA ESTA MERDA TODA!

ontem foi dia do pai e eu queria falar com ele e não posso. queria tê-lo aqui, na net, neste blog de que seria um colaborador essencial, neste mundo da informação global a que ele aderiria, já reformado e com tempo para se dedicar também às escritas e às leituras...

ontem foi dia do pai e eu queria tanto ter falado com ele. mas não posso.

por isso falo contigo. que sendo meio-irmão, fazes muito bem as vezes de meio-pai. recebe um abraço sentido de bom dia do pai, deste teu meio-filho.

até amanhã, em sto. antónio, Marvão, terra linda e agreste, mística e fria, rude e sensível. como nós. como o meu pai.

e eu queria tanto falar com ele...

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (8º Episódio)

Marvão é um concelho a saque, já há alguns séculos…

Explorado em primeiro lugar pelos seus vizinhos mais próximos, mas também, não faltam registos de cobiças mais longínquas, como foi o caso protagonizado pelos feudatários ingleses, que no princípio do século XIX, e após mais uma cruzada para nos defenderam dos espanhóis e franceses, arrebataram de uma assentada, como tributo dos marvanenses, cerca de vinte estátuas romanas de mármore, do sítio de Ammaia, para enfeitarem os jardins desse reino prostituído, que ao abrigo da mais velha aliança entre estados europeus, se tem servido das poucas abastanças dos desprotegidos lusos.
E não faltam histórias, da espoliação deste património ao longo dos tempos, desta antiga cidade romana para a capital centralizadora e que fazem gala nos museus nacionais como se aí pertencessem.

Mas voltando às relações de vizinhança, longe vêm ainda os tempos em que os dirigentes dos concelhos limítrofes cobiçarão as características impares deste concelho e a sua beleza natural, para as usarem como fonte de proveito para atrair turistas, que explorarão nas suas terras, sem jamais se importarem de abonar alguma contribuição para o desenvolvimento destas nobres gentes, que se têm sacrificado e esforçado para manter em bom estado esta dádiva da natureza.
Mas nem sempre, estes vizinhos se confinaram indirectamente a colher os proveitos destas terras. Tempos houve em que não se coibiram de vir aqui buscar pessoalmente, alguns dos erários pertencentes ao termo desta vila, como foi o caso, já referido anteriormente do conto de réis, levado em 1895 pelos regeneradores castelovidenses, não constando, em qualquer documento histórico, que alguma vez tenha sido devolvido e que como sabemos, foi Xico Bugalhão, credor de cinco meses de jornas em atraso e até hoje nunca liquidados.

Foi também o caso da vandalização histórica a que José da Quinta, (o serrador de pau-e-pinho que se apaixonou pela marvanense de olhos cor de caruma de pinheiro), assistiu nesse ano de 1898, quando acabava de ser solto do cárcere judeu, onde esteve a cumprir pena, por não se ter apresentado voluntariamente, em tempo próprio, ao recenseamento militar obrigatório, após ter decidido que, se a sua terra tinha ficado sem concelho, se deveria recusar a apresentar aos de Castelo de Vide. Só que o representante de sua majestade não pensava assim e mandou buscar o serrador, e depois de umas vergastadas no lombo, sentenciou que o encarcerassem durante dezoito meses, no calabouço castelovidense, para exemplo de outros.

Acabou o da Quinta, de cumprir a sua punição em Março de 1898, começando então a aperceber-se, que afinal, o concelho de Marvão já tinha sido Restaurado. Se é que tal termo se deveria aplicar, pois o que constava é que havia sido devolvido, por ordem dos progressistas centrais do luciano e do frenético citrino, agora no governo da nação. Tendo em conta, que o termo restaurar implicava intervenção ou acto de reparar, ou mais ainda, manifestações, revoltas, greves de fome, vereação barricada na Torre de Menagem do Castelo, etc., e como já sabemos, tal nunca foi feito por aqueles que iriam passar à história como os “restauradores do concelho”.
Mas se para os de Marvão, pelo menos as suas modestas gentes, o ter sido restaurado ou devolvido o termo era indiferente, ou como quem diria, igual ao litro, já para os de Castelo de Vide, tal facto era uma perda e mesmo descida de divisão, pois passariam a ser terceira, quando eram de segunda, e a teoria de transformar derrotas em vitórias ainda não era desses tempos.

Marchava então José da Quinta, após a libertação do cumprimento da sua pena como preso político, ou mais a propósito, de prisioneiro de paz em terras estrangeiras em direcção a nascente, que era o mesmo que dizer, em direcção à fonte. E isto, bem se poderia dizer com propriedade, e não apenas em sentido de orientação, pois quase sempre, desde que o mundo é mundo, que estas terras de Marvão vêm alimentando o concelho vizinho, quer de águas, quer também de tudo aquilo que estas ajudam a criar, seja vegetal ou animal.
E não se pense, que ao longo dos tempos, o aproveitamento dos recursos marvanenses pelos castelovidenses, se ficou por estes indispensáveis recursos nutricionais, pois tempo houve, em que até as pedras aqui vieram buscar, as ornadas, claro, porque as outras faziam calos! Foi o caso das que constituíram o famoso Arco da Aramenha, roubado em 1735 do local onde tinha nascido há mil e quinhentos anos, na já citada cidade romana da Ammaia, e acarretado para embelezar a entrada leste desta disforme vila judaica, ou quem sabe, talvez, para lhe confinar os limites e os manter intra muros. Só que, como sabemos, ao longo da história, sempre esses semitas tiveram comportamentos expansionistas, e como tal, não se coibiram acerca de dois anos atrás de anexarem as terras do concelho chegado, que agora foram obrigadas a devolver.

Preparava-se pois, José da Quinta, para sair da vila que o mantivera aprisionado durante ano e meio e já via, no curto horizonte, o imponente Arco da Aramenha. Monumento esse, que sempre ouvira dizer ter sido saqueado da quinta onde nascera e que tinha dado origem ao seu apelido, onde se dizia que estava soterrada uma importante cidade romana e que tinha sido acarretado para ali, já lá iam cento e cinquenta anos.
Mas o que fez chamar a sua atenção, não foi a beleza do Arco, nem sequer a sua magnânime arquitectura, pois como já sabemos, não possui o serrador competências para tais avaliações, para ele a única apreciação é a de que aquilo havia sido roubado à sua terra, e isso, era motivo suficiente para não gostar destas gentes.

O que ele está agora observando, é um magote de gente rude, equipada de picaretas, martelos, marretas, marrões e outro tipo de material bélico, comandados por meia dúzia de militares sujos e mal fardados, e que já deitaram abaixo mais de metade do Monumento furtado.
Com ingenuidade, pensou ainda, o da Quinta, que uma vez que tiveram que devolver os papéis dos arquivos ao concelho anexado e então restaurado, certamente, se preparavam para restituir o Arco furtado aos seus primórdios, a Quinta da Aramenha. Mas rapidamente se apercebeu, que não seria esse o fundamento da destruição, quando viu estampado no rosto dos semitas a raiva, com deitavam abaixo cada pedra, e se ouviam os seus comentários ameaçadores que iam vociferando contra os espanhóis marvanenses, dizendo já que nã pertancião a Castele de Vade, tamém nã tinhão quê dêxar ali rasto da su axistância, ê se qriam as padras, cas as viessam buscá...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (7º Episódio)

UM POUCO DE POLÍTICA...



Ao longo dos tempos sempre se disse que um dos melhores ofícios era o de Cantoneiro.
De quem se profere, com maleficência claro, só se verem trabalhar quando alguém passa na estrada, sem nunca se referir, no entanto, se será de veículo motorizado, ou simples transeunte que circule, gastando as solas dos sapatos ou, montado em animal de quatro patas.

Se de veículo a motor se tratasse, quão bela seria a vida que Xico Bugalhão levaria como Cantoneiro assalariado da autarquia marvanense, naquele final de século dezanove de 1895. Pois constava, que há apenas alguns dias havia chegado a Portugal, vindo de terras de França, o primeiro panhard & levassor. Do qual se dizia, que a sua primeira façanha, teria sido a de atropelar um incauto burro, que pastava sossegado nos campos do Alentejo.
Dizia-se ainda que, como lhe não haviam inventado buzina, certamente por isso não pode o quadrúpede ser avisado, começando o seu condutor, o senhor conde de avilez, aos gritos de: “arreda…arreda”, só que, não estando o competidor habituado a linguagem tão erudita, não percebeu, o que lhe seria fatal.

Contribuiu este facto, para que antes de tal invenção humana fosse baptizada de automóvel, carro, viatura, auto, popó, carriola, bate-latas, caranguejola, veículo, geringonça, automotor, ripolam, charrueque, calhambeque, carripana, bolinhas, etc., fosse o seu primeiro nome em terras lusitanas, o de “máquina do diabo”. Certamente, por ter atropelado o nobre animal, que no estábulo sagrado havia amornado aquele que seria cognominado como filho de deus dos cristãos, após ter alombado com sua mãe, da Galileia até Belém.

Xico Bugalhão era o segundo filho de José Bugalhão e Teresa Gonçalves (a já referida progenitora que, amamentava os filhos no intervalo de uma cartada na tasca), o qual terá vindo ao mundo em meados dos anos setenta do século XIX. Quis o destino, que o seu primeiro ofício fosse de Cantoneiro de estradas do município, se tal se podia chamar às míseras carreteiras de terra batida que atravessavam o concelho de Marvão naquela época, onde ainda não havia chegado o alcatrão. Matéria preciosíssima no futuro, sobretudo, quando autarcas candidatos pretenderem ganhar eleições, lançando essa massa preta para os olhos dos ingénuos eleitores.

Não se fez velho nesta ocupação o Cantoneiro, pois como já sabemos de episódios anteriores, o seu futuro será o de contribuir para transmutar grão em farinha, do qual se fará muito do pão que matará a fome a estas gentes. Mas não se pense, ter sido por falta de predisposição para o remanso de que este ofício é apelidado, que Xico resolveu mudar de ramo, pois não terá sido esse, o fundamento. Aliás, não terá sido apenas um, mas dois os motivos relevantes a influenciar o processo de tomada de decisão, do futuro moleiro.

O primeiro, já o havíamos aportado em episódios precedentes, que era a circunstância de nunca ter lidado bem com essa situação funcional, que é a de ser-se trabalhador por conta de outrem. Mesmo que esse outrem seja uma entidade abstracta, como é o caso do Estado, seja ele o central, ou o local como era a circunstância.
E bem podemos afirmar que esta imaterialidade, nunca terá tido uma aplicação tão adequada já que, há mais de um mês, os representantes locais desse Estado, logo, os patrões do futuro moleiro, haviam abandonado as suas funções e responsabilidades, para as quais haviam sido “meio-escolhidos” “meio-nomeados”, e tinham ido às suas vidas, despedindo-se à espanhola, pois o governo regenerador do ribeiro, por decreto, os havia mandado às urtigas sem outra justificação que não fosse, a de os considerar incapazes, e gastadores dos poucos dízimos gerados por uma gente de desventurados e pelintras.
Para além desses predicados que o regenerador ribeiro utilizou, para destituir a legítima vereação municipal do magalhães, e extinguir concomitantemente, o concelho de Marvão integrando-o no de Castelo de Vide; dizia-se por estas bandas, à boca-pequena, que estes haviam sido ainda burlados pela oposição progressista do frenético (frederico) laranjo, ao prometer-lhes que estivessem sossegados em suas casas, que não levantassem ondas e mantivessem na ordem as ingénuas e boas gentes marvanenses, que ele se encarregaria de os incluir na vereação futura do município castelovidense, quando o seu partido ocupasse o poleiro da vila. Só que tal nunca veio a suceder, porquanto os regeneradores judeus não estavam para aí virados, e como de costume, não cumpriam o acordado com o citrino.

O segundo, tinha razões mais objectivas e menos filosóficas. Tinha pois a ver com uma das maiores pragas sociais de sempre, desde que o mundo é mundo, ou pelo menos, desde que os romanos haviam passado a pagar aos seus colaboradores, em sal, os serviços por estes prestados, denominando pomposamente, tal facto, de “salarium argentum”. Termo esse, que viria a ser reduzido pelos portugueses, abreviadamente, para salário.
E no reduzir é que estava o problema. Aliás, nem era bem o reduzir, até se poderia afirmar, com mais propriedade, que seria o reduzir à fórmula ínfima, isto matematicamente falando, o termo exacto era suprimir.
E com salários suprimidos, ou melhor, como se diz por aqui, jornas em atraso, já o Cantoneiro Xico Bugalhão leva quase cinco meses, sem que lhe seja dado a ver a cor do dinheiro para as sopas. Julho, Agosto e Setembro, quando o empregador ainda era o município de Marvão. Outubro e o que resta do mês de Novembro, cujas responsabilidades têm que ser imputadas aos de Castelo de Vide; que, apesar de se andarem por aí a gabar em discursos pacóvios, como foi o caso do pinto sequeira, o de ter sido um grande melhoramento a integração do concelho vizinho, o facto é, que continuou a não cumprir com as suas mais elementares obrigações, como seja as de pagar o tal salarium argentum aos seus empregados. Apesar de ter retirado dos cofres da Câmara de Marvão a quantia de um conto de réis, quantia que, naquela época, seria mais do que suficiente para saldar as jornas com esta gente trabalhadora.

Como já foi contado, andaríamos por essa altura, em meados do mês de todos os santos, menos o de são receber. E o Cantoneiro Xico, com outro seu camarada de ofício, estavam a endireitar as suas cruzes, depois de terem debelado, mais uma das valetas feitas pelas chuvas, na carreteira entre a Portagem e a sede do finado concelho de Marvão, perto do lugar das Ferrarias, quando repararam, que se acercava deles um grupo com cerca de uma dezena de cavaleiros, a galope em suas cavalgaduras.
Arrazoavam alto, quase aos berros, com uma pronúncia estranha de ilhéus, e puderam os dois marvanenses ouvir claramente, um dos valetes a dizer para o do cavalo baio, de que não havia mesmo qualquer dúvida, que estes marvanenses estavam mesmo satisfeitos por pertencerem ao concelho de Castelo de Vide, e que tal como ele havia referido, para que constasse nos tempos futuros, tudo corria na melhor ordem e sossego. Bastava ver a consideração que revelaram estes dois trabalhadores, que até se puseram em sentido, assim que nos viram aproximar.

Ao ouvir tal arengo, questionou Xico Bugalhão o seu camarada, sobre quem seriam tais figurões? E o que fariam por estas terras esquecidas?
Ao que aquele respondeu:
- Atã…ò Xique, sã os nossos noves patrõs. Aquele éi o presedente da cambra de castel`vide, ô sequêra da costa, …e o papagai falante éi o secretare d`ele, andão nas elêçõs. Mas…os mal creadons, nein nôs desserem bom dîia, nein q’ando nos pagavão…

Está agora Xico Bugalhão, ainda com a picareta na mão, olhando os facínoras judeus a afastarem-se velozmente.
As palavras do seu consorte de desventura, começaram a revoltar-lhe as entranhas e, atirando o seu utensílio de trabalho, violentamente, contra a sebe, lá foi andando e dando conta de sua deliberação, para que também constasse em tempos futuros:

- A partir desse dia, não trabalharia durante toda a sua vida, para mais cabrão nenhum, nem que tivesse que expirar à fome…arre cos pariu!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (6º Episódio)

UM POUCO DE HISTÓRIA...


José da Quinta, pai de Luísa, viria a falecer em 1957, por mero acaso, ano de início das emissões regulares de televisão em Portugal.
Morreu desventurado, como sempre viveu, em lugar para pobres e indigentes, na misericórdia do concelho que o viu também nascer.
Antes de aí ter sido colocado pelos filhos, tinha vivido os seus últimos anos em casa de seu filho mais novo, homem remediado, que fazia dele o descendente com melhores posses para amparar o seu procriador.

Expirou só, certamente ao início da noite, pois, quando o encontraram de manhã, já estava mais resfriado que o caramelo em noite de inverno e, só com muita dificuldade lhe conseguiram vestir os seus trapos menos usados, para que tivesse uma afiguração mínima, quando encarasse, no outro mundo, o apóstolo das chaves.
A mesma ventura não teve em relação ao calçado, pois para além da tesura articular que já apresentava, quando lhe tentaram enfiar umas botas que lhe tinham arranjado, de dádiva qualquer, rapidamente concluíram ser tal lida impossível, pois estas eram de tamanho trinta e nove e o da Quinta sempre calçara o quarenta e dois. Mas tal não impediu que o finado as levasse a seu lado, por indução do seu genro Manuel, que logo ali alvitrou, que as metessem no caixão, que ele teria muito tempo para as domar e calçar lá na outra vida...

Viveu José da Quinta cerca de oito décadas. Era assim conhecido porque seu pai vivia numa quinta, e quando se encontrava na flor da idade, por volta da sua vintena de anos, foi bafejado pelo acaso de ter assistido ao fenómeno da mudança de século, do dezanove para o vinte.
Foi portanto José, que da Quinta lhe chamavam, atestador ocular de diversos acontecimentos peculiares, que sempre marcam estas datas de mudança de século. Mas dos quais, após cem anos, apenas nos chegam alguns ecos e às vezes distorcidos, ou dados memoráveis, que relatam apenas a versão dos predominantes, ou triunfantes quando de pelejas se tratar. E isto nos tempos que correm, em que o domínio da escrita é quase universalizado.

Cogitemos agora, como seria há dois mil anos, como aconteceu com a escritura do livro histórico mais importante da comunicação escrita, que apenas começou a ser registado trezentos anos após os acontecimentos mais relevantes que aí se contam, e ainda por cima, sobre alguém que dizem ter nascido como uma criatura banal e de quem apenas fizeram monarca após o seu fenecimento.

Não foi o caso desta nossa personagem, que nem a valete chegou (apesar de serem as cartas, muitas vezes o seu objecto de trabalho, como já referimos precedentemente) …e por isso, as dificuldades, para o autor destas pobres crónicas, se tornam acrescidas.

«Não eram fáceis os tempos, desse final de século.
No país reinava, carlos fernando luís maria vitor miguel rafael gabriel gonzaga xavier francisco de assis josé simão e vicente de fora, aquele que haveria de ser o único rei a ser assassinado publicamente, pelo menos que se saiba.

Havia subido ao trono em 1889, quando tinha vinte e cinco anos de idade, sucedendo a seu pai. Portanto há cerca de meia-dúzia de anos, por altura dos acontecimentos que agora aqui se narram.
Desde que o filho de maria pia reinava no país, constava por estas bandas, que os seus governos de regeneradores e progressistas, se sucediam quase com a frequência com que as marrãs parideiras dão à luz os seus bacorinhos, isto é, aproximadamente de três meses e vinte dias.
A situação do país, essa porém, era incessantemente a mesma, nem piorava nem melhorava, sobretudo, porque não podia piorar mais.

O da Quinta era um pouco mais novo que sua majestade e teria em 1895, aproximadamente dezoito anos de idade. E dizemos aproximadamente, porque isto de atribuir idade a um plebeu nessa época, não era exactamente o mesmo que atribuir anos ou nomes a um rei, pois os seus assentamentos nem sempre correspondiam à idade que um maltês levava no pêlo.
Vivia o mancebo em casa de seus pais, numa quinta entre S. Salvador que alguns denominam da Aramenha, e os Alvarrões, no sítio da Rasa. E com esta idade, já se poderia dizer que era um mestre na serração de pau e pinho. Pelo menos enquanto o sol brilhava no horizonte, porque essa revindicação das oito horas de trabalho diário, ainda levaria uns anos a chegar por cá, pois ainda há pouco tempo que tal invenção, teve o seu início do lado de lá do Atlântico, e tenhamos em conta que a televisão ainda não havia sido inventada.

Era já forçoso nessa época, que ano em que se completasse dezoito anos de idade, deveriam os moços dirigir-se às sedes de seus concelhos, sobretudo, se de varões se tratassem, para aí serem recenseados para o serviço militar. E assim procedeu o serrador da Quinta. Tendo completado essa idade no mês de Novembro desse ano da graça, subiu o serrador as ladeiras a caminho de Marvão, para que aí tomassem nota de seu nome, como rapaz perfeito e viril que se prezava de ser, e capaz de proteger o reino do senhor da casa de bragança.


As Portas da Vila

Não se pense que Marvão era como nos dias de hoje, conhecido por meio mundo, pois este trabalhador de madeira bruta, sempre viveu aqui nas encostas deste monte, e está agora a dirigir-se pela primeira vez na sua vida, aos refúgios de ibn marwan. Não admira por isso que vá enganado.

Ao cruzar os arcos das portas da vila, não perdeu o serrador muito tempo a admirar a sua esplendorosa arquitectura, a tanto não o ajudavam os seus saberes, e como não tendo por ali vislumbrado alma viva a quem perguntar onde seria a Câmara Municipal, resolveu subir a rua que o havia de levar à praça do pelourinho.
Ali chegado, deduziu que estaria no centro da vila, pois estes locais de fazer justiça, quase sempre ocupam lugares privilegiados e centrais, para que todos aí tenham acesso com facilidade. Mas neste caso, continuava o serrador, sem enxergar alguém que o informasse de suas dúvidas, e foi com dificuldade, que no meio do nevoeiro que sempre aqui mora, por esta época, que lhe surgiu a figura de uma mulher de meia-idade embrulhada num xaile, a quem o serrador perguntou onde seria o local que procurava.

Não obteve o da Quinta qualquer resposta imediata por parte da musa, como seria o de lhe responder, simplesmente, que deveria ser ceguinho, pois não via que era mesmo ali em frente dos seus olhos. Ou então, ainda com mais perspicácia, como a resposta…do que o que vossemecê quer sei eu!
Mas não, em vez de resposta simples, recebeu um sorriso irónico, tão característico das mulheres quando sabem, mas não querem dizer, que o deixou completamente aos papéis.

Preocupado como estava em chegar ao sítio que procurava que não reparou o jovem serrador, num primeiro momento, nas feições graciosas da sua informadora. Nomeadamente, no brilho esverdeado de seus olhos, que assim de repente, lhe fizeram lembrar a cor da caruma dos pinheiros, que diariamente tirava dos troncos que ia cerrando.
Tão enfeitiçado estava nas feições da mulher, que quando deu por si, só já apanhou a parte final de seu discorro, no qual a marvanense lhe anunciava que a Câmara de Marvão já não existia! …

Vai já o serrador da Quinta, descendo a encosta pela nascente, através da calçada romana que o há-de levar à Portagem. A voz da marvanense, de olhos da cor de caruma de pinheiro, continua a ecoar nos seus ouvidos e penetrando nas profundezas dos seus neurónios, como uma música de intervenção.
Conseguia agora recordar toda a sua conversa sobre a Câmara, que houvera encerrado há cerca de um mês, por ordem do governo regenerador do ribeiro, que o concelho de Marvão havia sido apagado, que o presidente magalhães e os vereadores pinheiro, forte, serra e rosado, talvez enganados pelos progressistas, haviam aceitado esta decisão como cordeirinhos; assim como o administrador afonso e o secretário pinto de Sousa que tinha entregue todo o Arquivo ao judeu castelovidense; tudo sem qualquer revolta, metendo todos o rabo entre as pernas e lá tinham ido chorar lágrimas de crocodilo para o regaço das suas esposas; que parecia que já não existiam homens com eles no sítio por estas paragens, que fosse a Maria da Fonte destes lados para comandar o povo e a história seria outra…, que se devia ter exigido se se tinha que extinguir um concelho que fosse o de Castelo de Vide, que sempre nos haviam enganado e vivido à custa do suor desta nobre terra, que agora pertencia ao termo de Castelo de Vide…onde ele se deveria dirigir se quisesse dar o nome para servir tal canalha, etc., etc.…»

Praça do Pelourinho...ou do encontro.

Parou agora por momentos o serrador e levando a mão ao bolso, procura aí a sua pataca de tabaco.
Enrola calmamente um cigarro, acendendo-o de seguida, virando-se na direcção do monte do castelo e, de repente…pareceu-lhe ver no meio do nevoeiro a marvanense de olhos verdes…

domingo, 3 de fevereiro de 2008

RENDIMENTOS DO CAPITAL GENÉTICO...

Escrito por: Mata Borrão

Era Agosto, no fim da tarde longa, quase escuro, quase noite.
Numa pequena calçada que subia do rio Sever até à estrada da Ponte Velha, um magote de gente alegre, muito alegre mesmo, sobe lentamente o caminho.

Entre eles o Manel, felicidade estampada no rosto, pequeno e enrugado, os olhos pequeninos de riso…Todos riem, todos falam, a alegria é tanta, que até entontece.
De repente, o Manel agarra na neta mais velha por um braço e desata a dançar e a cantar.


A eira onde talvez tivessem dançado pai e filha de Chico...


Todos param a aplaudir, a comentar e a rir ainda mais.
A dança corre periclitante, pois a calçada é inclinada. A cantiga é a “do cigano”.Conta a história da vida dele, que não corre nada bem, ao que parece…
De entre todos, vê-se o Chico, contente da vida por ver o pai e a filha a dançar, mas… não me lembro da cantiga. Como eu gostava de me lembrar da cantiga do cigano, que o Manel cantava, enquanto dançava com a neta mais velha e todos os bugalhões riam, comentavam e aplaudiam.



Restos de um Marvão esquecido...e de sonhos perdidos.


Que feliz eu era, e não sabia.


...e sempre o Sever: Testemunha dos tempos


sábado, 26 de janeiro de 2008

O VÍRGULA...


A casa do Pego Ferreiro



Janeiro é por natureza um mês feio para os urbanos por causa da chuva. Mas um mês fundamental para aqueles que vivem nos campos, e que ainda sabem avaliar os favores do tempo.
Não nos dias que correm, onde as chuvas já pouco importam, mesmo aos rústicos, pois como todos sabemos, o cultivo já teve melhores dias, pelo menos neste país de sol e praia.
No entanto, sempre que ocorre um inverno mais seco e uma primavera um pouco solarenga, quando chega o estio, e nos vemos ameaçados com a amofinação de não nos podermos banhar diariamente à grande e à francesa, lá se lembram os das cidades, que talvez não tivesse sido boa ideia terem andado a exaltar, que tinha sido bom o tempo do inverno, só porque não choveu.



A casa do Pego Ferreiro, e vista do Moinho



Não foi o caso deste ano de 1920, pois que, dos quinze dias que este primeiro mês já leva decorridos, ainda não parou de diluviar. Até parece, que o poder divino se esqueceu de que há pobres que precisam de ganhar o sustento, que não têm uma seara nas costas, que pouco têm com que se cobrir, a não ser, o colmo dos seus casebres à noite, e a copa de alguma árvore durante o dia.

Acordou Teresa, mulher do moleiro, um pouco enjoada, não sabendo se, por noite mal dormida, ou porque terá chegado o dia de parir o ser que em si vem gerando há cerca de nove meses.

Xico, assim se chamava o moleiro do Pego Ferreiro, havia chegado a casa, quando já anoitecia, depois de mais um dia de freguesia, na distribuição dos talêgos de farinha, pelos muitos fregueses por onde haviam passado há duas semanas atrás a recolher o grão, que lhe dera origem.
Como de costume, chegava amontado no seu Macho preferido, que sabia o caminho da casa de cor, trazendo em fila indiana, uns presos aos outros, a sua vasta frota de tires muares. E também como era hábito, era elevada a taxa de alcoolemia que circulava nas suas veias e artérias. Proveito do seu bom trato com muitos dos amigos fregueses, que se orgulhava de ter.



A auto-estrada dos Tires muares


Tivessem os vigias daquela época, efectuado uma daquelas operações de fiscalização e propaganda, tão na moda nos tempos de hoje e, certamente, o moleiro teria que recorrer aos préstimos dos confrades de então, do seu vindouro bisneto Mário, senão quisesse ver a sua concessão de condução de machos e mulas confiscada, para além da elevada coima que lhe assentariam.

Sempre o vinho teve nomeada de tornar as pessoas mais inconscientes e belicosas, sobretudo se ingerido em quantidades exageradas, mas não era esse o efeito produzido com o moleiro Xico Bugalhão. Pois, parecia que quanto mais bebia, mais os seus humores pareciam benfeitorizar.
Só que Teresa, diga-se como quase todas as mulheres, sobretudo, se de esposas se tratar, é que parecia não estar pelos ajustes. E ainda, o moleiro não se havia apeado do seu anjo muar, e já ela irrompia em desmedido pranto, maldizendo e amaldiçoando o precioso néctar, e desejando que este já se tivesse esgotado…, ao que o moleiro respondia: eu bem tento… mas, tu não me ajudas!
Mas em simultâneo, talvez guiada por inspiração religiosa matrimonial, lá o ia amparando até junto do lume, que sempre crepitava na chaminé, para que este pudesse enxugar, em próprio corpo, a roupa ensopada da rega que tinha apanhado.

As pedras do Moinho semi-enterradas

Enquanto Teresa e a filha mais velha Joaquina, procediam à acomodação da frota dos tires muares nas respectivas quadras, e ainda mal o moleiro se havia acomodado junto ao lume, já as suas duas filhas mais novas, Marizei e Genoveva a quem chamavam Conceição, se lhe atiravam para o colo, pois já sabiam que aquele serão seria longo e de muitas histórias e cantilenas.

Sabemos hoje que muitas das estórias e cantilenas infantis, mais não são que uma maneira graciosa de nos moldar social e culturalmente e, não raras as vezes se profere que são verdadeiras e ardis estratégias de instrução sexual. Assim se diz do capuchinho vermelho, da gata borralheira, da branca de neve e sete anões, da carochinha e de outras agora mais hodiernas…
Não podemos extrapolar se seria essa a reflexão pedagógica do moleiro Bugalhão. Tenhamos em conta que eram duros aqueles tempos, tais como os de hoje, em que costumamos dizer que nem tempo temos para nos aliviar de fluidos produzidos pelo organismo ao longo do dia, tal o frenesim em que nos obrigam a viver.

O facto é que quando Teresa, a mãe, e Joaquina, a filha, se preparavam para entrar em casa, depois de cumprida a sua missão de arrumadoras, e sem que lhes tivessem dado qualquer gorjeta, puderam ainda ouvir o final da cantilena com que o moleiro mimoseava as filhas mais novas:
“…encontrei maria a cag…/ p´ra cima de uma travessa/ botê-lhe a capa p´ra cima/ maria cag… depressa”…
Ficou Joaquina mais escarlate que o rubro do pendão português, então recentemente criado, e Teresa à beira daquilo a que futuramente se chamaria, um carga de nervos…

Saídas de água do Moinho do Pego Ferreiro


Tal o baque sofrido por Teresa ao ouvir tal linguajar para as duas inocentes, que desatou novamente no carpido interrompido e vociferando contra a sua desditosa vida…este homem desgraça-se a ele e a mim…, que não me leva o Senhor, deste mundo, etc., etc.…

Levou Xico algum tempo a reagir ao aranzel da mulher. Mas, esta última oração parecia-lhe cair mesmo a propósito. Levantou-se, pousando Marizei com todo o afecto sobre o banco em que antes se encontrava sentado, e dirigindo-se à mulher pegou nela ao colo embaraçada e, tropeçando, dirigiu-se para o quarto contíguo, deitando-a sobre a tosca coberta que cobria a enxerga.
Depois, calmamente, dirigiu-se à mesa da sala, onde jaziam dois redentores em poses de via-sacra e, pegando-lhes com o apreço divino que tais estaturas mereciam, foi colocá-los, um de cada lado da mulher, verbalizando: …vá Teresa, com qual queres ir…com este, ou com aquele…?

À entrada da porta Joaquina, já uma mulherzinha e as duas petizas, riam às gargalhadas. Viu-se a mulher do moleiro naqueles preparos e ante tal cena, sem se saber muito bem por quê desatou também a rir…e, de repente sentiu uma dor intensa, como se algo se lhe arrancasse interiormente.
Depois dessa, outras se seguiram, cada vez mais violentas.

Não cantarolava já agora o moleiro. Num impulso tinha pegado nos dois cristos e sem saber muito bem o que fazer, como sempre acontece aos homens nestas situações, andava de cá para lá com os ditos nas mãos, talvez, quem sabe, suplicando por uma boa hora…
Valeu-lhe a chegada de sua mãe, Teresa Gonçalves, chamada com urgência por Joaquina. Sempre as mães nos chegam nas horas certas e de apoquentação, sobretudo àqueles, que ainda têm a ventura de as ter.

O rio Sever junto ao Moinho, testemunho vivo destas estórias...


Pouco faltava para a meia-noite, quando a avó Teresa, conseguiu retirar com vida das entranhas de sua nora, o segundo filho varão do casal de moleiros, que seria o único, pois o primeiro havia falecido da lua entripal, e a partir daí só germinariam filhas: Maria a que todos conheceram por Júlia, Luísa e Emília de uma só vez, e por fim Vicência.

Há horas de sorte na vida, tal como foi o caso da natividade desta criança; o ter nascido viva e sem deixar sequelas em sua ascendente, numa época em que a mortandade infantil e materna, não era aquilo que é hoje, pois quase sempre, o balanço entre vivos e mortos, quase se igualava a zero.
Teve sorte este moço, ao nascer vivo e valente, para as noites de geada e maresia que iria passar no futuro ao relento, certamente influenciado pelas práticas de preparação para o parto usadas por seu pai. Ou talvez, quem sabe, devido a alguma jura feita aos redentores, na hora da aflição.

Está agora ao colo de sua avó Teresa Gonçalves, mulher fumadora e boémia, de quem se diz, frequentar tascas e tabernas da época, para jogar a bago com os competidores masculinos e claro beber uns copos. Onde seu marido, Zé Bugalhão, levava as crianças, que ficava a velar em casa, para que ali mesmo, fossem aleitadas.
Pode por agora usufruir esse colo e, simultaneamente, da primeira cantilena que esta lhe vai cantando:
“…ai pirroli, pirroli, pirroli/ ai pirroli, pirroli, pirrolé…/ se não queres chocolate, nem aguardente/ bebes café”.

Um mês após este nascimento, e aquando de mais uma distribuição de farinha pela freguesia, apresentar-se-á, o moleiro, no registo civil de Santo António das Areias, dizendo que lhe nasceu um filho e que se chamará Manuel…
Mas não presume o moleiro que, seguramente, por questões hereditárias, o dito virá ser conhecido por estes sítios, não por esse nome, mas por outro, com que será rebaptizado pelos seus camaradas de escola: O VÍRGULA!

Mas para isso, terão ainda de passar mais seis ou sete anos…


sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

RENDIMENTOS DO CAPITAL GENÉTICO...

Escrito por: Mário Bugalhão


Tristes, muito tristes.
Assim eram as pessoas que encontrei, ao fim do dia, no percurso que fiz entre o trabalho e a estação de comboio.
Nem um sorriso apressado.
Apressados, só os corpos em busca do refúgio da chegada.
Como é possível viver assim?

Já na carruagem, pessoas de olhos fechados a fingir que dormem, e outras, de olhos abertos a fingir que vêem.
Faz de conta, esta viagem.

Toca a campainha das portas, anunciando a chegada a mais um destino.
As pessoas saem, de cabeça baixa, acotovelando-se, não vá a do lado dar o passo maior.
Entra ar puro enquanto as portas se mantêm abertas.
Perco a esperança.
Dos novos companheiros de viagem que entraram, nem um sinal de alegria.
Todos trazem no rosto, o sorriso ao contrário.
Paisagem esta, bem mais agreste e deprimente, do que aquela que se vê nas fotografias deste episódio 4º.
Será que as pessoas ficaram em casa e, mandaram as suas tristes sombras trabalhar?

Lá vai o comboio, massajando o corpo, adormecendo o pensamento, seguro no seu carril.

Era assim o macho do Ti Manel Bugalhão, seguindo o carril, quando lavrava.
Cabeça baixa com o olhos a acompanhar.
Focinho babado, beiças arregaladas, e os dentes a luzir.
Parecia até sorrir.
Se calhar, feliz por não ser burro.
Algumas das minhas companhias, da carruagem onde vou, teriam inveja do sorriso do macho.

Lá ia ele, rego após rego.
-Anda macho d`um cabrão.
-“Pa riba, pa riba macho”, gritava.
Ia abrindo feridas na lavrada, e ao mesmo tempo, estendendo uma toalha de terra fina, escura e fresca, que servia de festim, para os pássaros não convidados.
-Anda corno, dizia prolongando os ós.
-“Ó baixo, ó baixo”, instruía o Ti Manel, sempre que o bicho se distraía, e o rego entortava.

O céu estava parado.
O vento também.
O sol, ardia no lombo do macho e nas goelas do homem, vingando-se dos momentos em que as nuvens o não deixavam passar.
Um convite.

Pararam debaixo de uma oliveira.
O macho para retemperar as suas forças, o Ti Manel, para matar o vicio e preparar um cigarrito.
Tabaco numa mão, mortalha na outra, corpo imóvel, e muito cuidado para juntar os dois ingredientes, não fosse a mão falhar.
Enrolava, apertava, e por fim, sobrava sempre um pouco de saliva que o sol não secara, para selar o “paivante”.

Isto é que é vida.
O sol, o campo, a paz, e o descanso merecido
Mas o melhor de tudo, era sentir o fumo do cigarro a deslizar pela garganta, até lhe alugar os pulmões.

Pára o comboio.
É a minha estação.
Levanto-me com cuidado (tive a sorte de fazer a viagem sentado), empurra daqui, empurra dali, e lá vou eu, cabeça levantada, olhar em frente, arriscando-me a levar uma pisadela por mostrar tal altivez; mas é o risco que corro por não estar triste e de cabeça baixa, apesar de ter motivos para isso...

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (4º Episódio)

NASCER, VIVER E MORRER EM MARVÃO...


Paisagem agreste da serra de Marvão



João Serra havia trabalhado o dia inteiro nas terras do Cabeço do Seixo, onde desde as seis da manhã, tinha semeado o seu meio-alqueire de centeio em terra arrendada, lavrada pela sua célebre junta de machos velhos e cheios de “pulmêra”, mas que este sempre gabara, anos mais tarde, ao seu cunhado Manuel, como sendo a melhor parelha do concelho de Marvão.

Puxava agora uns toscos acordos musicais, no seu harmónio de duas escalas, no bailarico do ti João do Barreirão na Abegôa, cerca de quinze quilómetro a sul do local da sementeira, na aba da serra de Marvão.
No salão de sobro, o som do filarmónico instrumento do Serra, saía como uma sonância arrastada e chorosa, que parecia exprimir um queixume, que dizia "…vem um homem do cabeço d´seixo… só por castigo, só por castigo…", enquanto meia-dúzia de pares de rapazes e raparigas, lá iam arrastando os pés, depois de mais um dia árduo de trabalho e, simultaneamente, aproveitando para exibir dotes a seus pares, para possível acasalamento futuro.

Estávamos então no ano de 1919, e o nosso músico estava deserto que a função desta noite chegasse ao fim. Pois, para além do corpo moído por doze horas de trabalho de lavoura, tinha ainda que palmilhar mais quinze quilómetros até ao sítio dos Carris, do outro lado do monte, onde iria conhecer Luísa, a mais nova das suas irmãs, que já havia quinze dias tinha visto, pela primeira vez, a luz do dia.

Luísa, que seria conhecida anos mais tarde por Luísa Serra, apelido que nunca constaria no seu registo de nascimento, era a sétima descendente viva de José Lourenço e Joaquina Serra.
Antes dela, separados em média por dois anos, já haviam nascido João, Maria, Catarina, Manuel, Eufrazina e Esperança. E, mais alguns nados mortos, que nunca chegaram a ter nome.

De Joaquina, muito pouco se conhece, a não ser que se tratava de mulher simples e trabalhadora, e que morreu subitamente, sozinha, na sua casa nos Carris, após separação de José Lourenço, mais conhecido por José da Quinta, jogador de cartas inveterado. Do qual se diz, que certa noite, após ter perdido todas as suas economias e mais nada tendo para jogar, pôs sobre a mesa de jogo a sua mulher Joaquina, só não a perdendo, porque o seu adversário não aceitou o desafio, perdoando-lhe a dívida.

Luísa viveu os seus primeiros anos de vida na companhia da irmã Esperança, dois anos mais velha. Os restantes irmãos, já haviam saído de casa para ganhar o pão e trabalhavam em casa de patrões. João, o mais velho, já tinha constituído família, e vivia agora do outro lado da serra, perto de Santo António das Areias. E, como sabemos, vai agora a caminho para conhecer sua irmã e visitar sua mãe, que não vê desde o seu ajuntamento com Cesaltina.

Foram poucos os anos que as duas petizas conviveram, pois Esperança haveria de ser entregue a uma família rica de Monforte, para ser criada, quando tinha apenas seis anos de idade.
Desse tempo, recorda Luísa apenas, os seus encontros fortuitos com os vizinhos, que com elas se metiam, perguntando-lhes os nomes. Ao que Esperança, por ser mais velha respondia: “eu xou Pancha, e aquela é Lija…”

Como era normal naqueles anos vinte, não frequentou Luísa qualquer escola, e embora aprendesse toda a universidade da vida, será até ao fim dos seus dias considerada como analfabeta pela estatísticas sociais.
Aos dez anos de idade, já trabalhava em casa de seu irmão Manuel, a troco de uma sopa a cada uma das refeições e um pouco de pão de centeio, com que se alimentavam os pobres dessa época, já que, essas coisas das dietas só seriam faladas muitos anos mais tarde. Durante a sua juventude, trabalhou no campo, nas terras de quase todos os proprietários das redondezas, em trabalhos sazonais, desde os Alvarrões até à Galocha.

Como já foi referido anteriormente, quis o destino, ou qualquer outro acaso, que numa das suas visitas a casa de sua irmã Maria, que após ajuntamento havia ido morar para o Vale de Carvão, conhecesse Manuel, e como costuma acontecer nestas situações, logo ali os dois estranhos se deram d´olho.
Claro que esses tempos, não eram como os dias de hoje, que mal dois jovens se conhecem, logo começam a ufanar-se de andarem
No caso destes dois, o que podemos dizer com propriedade é que foram apresentados. Se assim se pode dizer da acção de malandrice, usada por Maria, quando disse com simplicidade de mulher, “olha mana…este aqui, é o Manel, filho do moleiro ali do Pego Ferreiro…”.
Não precisou Maria de promover mais, qualquer propósito de charme junto dos dois moços, pois sem se saber muito bem porquê, ou talvez, porque cupido escondido atrás de um dos canchos que circundavam a pobre casa de Maria, ao ver os dois estranhos parados frente-a-frente, lhes lançou a sua certeira seta e logo ali, lhes traçou o fado.

Haviam já passado dois meses desde o encontro de Luísa, rapariga trabalhadora por conta de outrem e Manuel, rapaz contrabandista de café e azeite, que ajudava o seu pai na arte do moinho, mas que nunca havia trabalhado para ninguém, postando em prática a divisa de seu pai Xico Bugalhão, que afirmava “que em sua casa nunca nenhum dos seus filhos trabalharia para patrão algum.”

Luísa conseguira nesse dia, convencer sua mãe a irem ao baile das festas da Aramenha. Para tal, vestira o seu mais bonito vestido, que sua irmã Esperança lhe havia trazido na última visita, e que tinha sido de uma das filhas da sua abastada patroa de Monforte.
Sentada no colo de sua mãe, assistia às diversas desgarradas entre rapazes e raparigas, em despiques de sedução tão em uso nessa época, quando, deu pela chegada de rapaz desconhecido, montado no seu macho vermelho.

Terá o vermelho parado por aqui...
Estremeceu o coração de Luísa, ao verificar que afinal o dono do macho vermelho era Manuel, moço que lhe havia apresentado sua irmã. E como moça cantadeira que se orgulhava de ser, logo na sua cabeça se começaram a desenhar as rimas das palavras que prontamente lhe saíram da garganta, e em tom de desfio, as lançou ao vento: "amor nesse teu rosto/ é onde eu me entretenho/ se tu em mim fazes gosto/ eu em ti melhor empenho".

Não manifestou Manuel qualquer reacção de resposta, fazendo-se até desapercebido, pois como sabemos não é Manuel rapaz extrovertido, que andasse para aqui a responder a cantigas de raparigas.
Mas a resposta sabemo-la nós e, certamente, que na manhã seguinte fará parte do reportório do filho do moleiro, quando na solidão do seu moinho, trautear a réplica a esta atrevida: "eu queria se feiticeiro/ dessa tua criatura/ também queria afeiçoar/ uma cara como a tua…".

Seis meses depois, montariam estes dois o macho vermelho, já aberto dos peitos, das constantes cavalgadas que o seu dono o obrigou a fazer entre o Pego Ferreiro e os Carris, e passariam a sua noite de núpcias em casa de Julião Pena e Mari´zei, a partir desse momento, cunhados da cantadeira dos Carris.

O que o autor desta crónica nunca conseguiu apurar, é se o nobre animal conseguiu transportar directamente o casal para o Vale Carvão, ou, se de tão “cansado”, se viu obrigado a retemperar energias, num dos vários prados que se lhe depararam no percurso…

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

COMO NASCE UM “BLOGUE”… (3º Episódio)

As águas e as margens do rio Sever


A DURA VIDA DE UM HOMEM...



A tarde havia sido longa, e na taberna do Xico Videira já passava das nove da noite, quando Manuel, na súcia com o Pingas, o Zé Algarvio, o Cancelas, o Julião Pena e o ti Mané Batista, haviam já, quase esgotado, as mil-e-uma peripécias da candonga, que contavam vezes sem conta, uns aos outros, como se fosse a primeira vez; tal a inspiração, que punham, ao relembrar cada uma das sortes por si vividas, por essas veredas e canchos dessa zona da raia. E, em simultâneo, esgotavam o vinho, nas diversas rodadas, que cada um já havia mandado vir.

Manuel, há já algum tempo, com um desassossego fora do normal, que dizia aos parceiros, que tinha que ir andando, que aquele copo seria o último, e que a sua enxerga de palha, há muito que o esperava no moinho do Fraguil.
Esta agitação deixava os amigos desconfiados sobre tal urgência. Pois todos sabiam, que o parceiro, raramente tinha pressa de ir para casa. Tanto mais agora, sem mulher que o esperasse…questionando-o até, com uma certa apreensão e malandrice, se não houvera dormido a sua indispensável sesta.
Mas Manuel, já há muito tempo que mal os ouvia. Desde que aquele piãozinho zumbidor começara a girar na sua cabeça…e, só para se livrar de mais piropos por parte dos companheiros, ali permanecia. Embora disfarçando com dificuldade, a sua sobeja ansiedade, acabando por se despedir, agarrando na jaleca, que nunca dispensava nem de inverno nem de verão, e um pouco acabrunhado, lá seguiu a caminho do moinho.

É sabido que desde que baco revelou ao homem essa maravilhosa descoberta, que é a fórmula de transformar uvas em vinho, através do processo de fermentação das ditas, que este, tem sido o responsável por diversos milagres, como são os casos, sobejamente descritos, de dar vista aos cegos e fala aos mudos. É claro, que quem diz fala diz pensamentos, já que por norma estes precedem aquela, através de complexos e elaborados processos bioquímicos.

Não pode o autor destas palavras saber se foi por efeito desse mesmo vinho, que Manuel vai agora cabisbaixo, absorto nessa exclusiva capacidade humana, que é o reflectir sobre a vida, se a tanto lhe assiste os seus moderados conhecimentos, de homem que apenas fez a terceira classe, mas a quem a escola da vida, tem dado algumas lições de filosofia.

O caso com os “carabineros”, lembrado pelo ti Mané Batista, afluía-lhe agora ao ficar sozinho, com clareza à sua mente. Caso esse, sucedido quase há vinte anos, quando Manuel já havia conhecido Luísa, mas que lhe haveria de marcar o resto da vida, ao ter como desfecho a sua prisão em Cáceres, pouco tempo depois de ter acabado a guerra civil de Espanha.

…«Manuel, teria então cerca de vinte anos e o Batista, já homem maduro, andaria perto dos trinta. Haviam pegado como de costume, ao início da noite, cada um na sua carga de trinta quilos de café, que iriam entregar perto de Valência de Alcântara.
Manuel, apesar de ainda gaiatão, tinha já alguma experiência nestas coisas do contrabando, pois desde os doze anos de idade, que seu pai, Xico Bugalhão, de quem ainda não havíamos falado, mas que não está esquecido, o acostumara a acompanhar, para aprendizagem, o numeroso rancho de homens que chegou a ter a trabalhar para si nestes negócios do contrabando. Mas nada que se igualasse com a de Mané Batista, que para além da experiência, acumulava com alguma fama e dotes de homem teso, sobretudo, quando se tratava de enfrentar os guardas-fiscais portugueses, ou os “carabineros” castelhanos, que deixava qualquer parceiro seguro e tranquilo.

Mas naquela noite de início de Fevereiro de 1940, as coisas tinham começado mal, pois desde manhã que caía uma chuva contínua e forte, a qual já fazia extravasar o Sever e o seu afluente do Pego da Caleja, o ribeiro dos Tintos. As pontes e pontões, já nessa época eram escassas e sempre guardadas pela guarda fiscal, de modo que a travessia destas linhas de água se fazia através de passadeiras escondidas, a que os eruditos chamam poldras, mas que, naquela noite se encontravam engolidas pela cheia.

Combinaram, estrategicamente os dois contrabandistas, que na travessia do Sever, seria Manuel, por ser mais novo, a atravessar a nado, sem carga para a outra margem; chegado lá, lançaria uma corda para a margem de cá, depois de a amarrar bem a uma árvore, regressando para vir buscar o seu carrego, e passariam ambos e as cargas, com a ajuda da corda; quando chegassem ao ribeiro dos Tintos, fariam o inverso, sendo a primeira travessia para amarrar a corda na outra margem, feita belo Batista.

A empresa acabou por ser levada a bom porto, com relativa facilidade, e salvo os corpos encharcados até aos ossos e algum tempo perdido, os dois homens e respectivas cargas, haviam já atravessado a fronteira, e passavam a norte da Fontanhêra, quando o relógio de Manuel marcava a meia-noite.
A noite, como por milagre, havia clareado, a chuva tinha deixado de castigar os corpos dos dois homens, que seguiam em silêncio, um detrás do outro, separados por cerca de cinquenta metros. Pois se os “carabineros” lhes saíssem, sempre um deles teria meia centena de metros de dianteira na fuga.

A lua-cheia, de um luar de Janeiro ainda não findado, luzia agora com todo o seu esplendor, sobre estes dois corpos húmidos, que se deslocam lentamente, libertando uma evaporação contínua, que se não soubéssemos tratar-se de duas criaturas humanas, que acarretam às costas o seu sustento para os próximos dias, possivelmente, julgaríamos que se tratava de duas almas penadas, que descendo do céu, procuravam o melhor sítio junto ao solo, para aí pernoitarem no que restava dessa noite.

Manuel rapaz introvertido caminhava atrás, e ia afinando, mentalmente, alguns versos dos seus dotes poéticos, que na manhã seguinte, lhe serviriam de cantilena, enquanto se entretivesse a picar a pedra do moinho de seu pai, no Pego Ferreiro: “Eu q`ria ser fetecêro/dessa tua criatura/também q´ria ser herdêro/duma cara com`a tua”; “A mulher p`ra ser bonita/e p`ra ser do agrado/há-de ter um bom bigode/e o nariz arrebitado”. E, quem sabe, talvez um dia lhe servissem como ensaio para alguma desgarrada, com Luísa, rapariga cantadeira.

Tão absorvido vai nos seus ensaios, que nem se deu conta de dois vultos, que saídos não se sabem de onde, lhe deitaram já a mão aos trinta quilos de café, e lhe zunem ao ouvido: “conho hombre, onde piensas que vas…”
Manuel, após o abalo…mas com a agilidade da sua juventude, conseguiu libertar-se das presilhas que o apresavam à carga e inicia a sua fuga na direcção do Batista, que seguia na frente; e ao chegar perto dele bradou: “ti manel, fuja que temos aqui os “carabineros”…

No instante seguinte, o som de um tiro de fuzil soou estridente no ar, e o ricochete da bala zuniu, batendo nas pedras, ali bem próximo deles. No entanto, os dois fugitivos já se haviam refugiado atrás de uns calhaus, protegidos por uma plantação de “figueiras-chumbas”, sem que o Mané Batista largasse os seus trinta quilos de café, que lhes iriam servir de negociação e, simultaneamente, para engodo aos espanhóis.

Num primeiro momento, reinou um silêncio absoluto, até que um dos de carabina, resolveu advertir, que se “los protuguêses de mierda” senão entregassem, lhes enfiaria “una bala en nel culo”. Ao que o Batista ripostou com, “espanhol dum cabron, daqui só abala, quem tiver os sessenta quilos de café…”, enquanto, furtivamente, apanhava algumas pedras que ia metendo nos bolsos.

A iniciativa do assalto pertenceu aos espanhóis, talvez, quem sabe, ainda inspirados em Aljubarrota e foram-se aproximando. Ou talvez, pela a afoiteza que lhes davam as carabinas. Pois lá iam disparando, tiro a tiro, sem no entanto causarem qualquer dano aos moços da “ala dos namorados”.

Manuel rapaz novo, começava a ficar receoso, e ia dizendo “ ti Manel…levamos esta carguita, que já não perdemos tudo e vamos cavando, que os gajos já ficam contentes com a outra…olhe que ainda nos findam aqui com a vida”. Mas o Batista, não estava pelos acertos, e reafirmava que dali só abalava com tudo ou sem nada, e que nunca espanhol nenhum ficaria a troçar dele.

Manuel via as coisas a ficarem feias, mas também não queria dar parte de fraco, e ficar-lhe na consciência o abandono de um amigo numa hora delicada, e ainda por cima o teso do Mané Batista!... Que decidiu ficar, acontecesse o que acontecesse…
E o que aconteceu foi o que tinha que acontecer. Mal um dos “carabineros” se aproximou um pouco mais, e ao desviar-se de uma das folhas cheia de picos, que protegia os portugueses, o Batista, com a pontaria infalível de um david, sacudiu-lhe uma “calhoada” com a pedra mais afiada que havia escolhido, apanhando o pobre golias castelhano, mesmo no centro da testa, derrubando-o de cangalhas…e do qual, apenas se ouviu um profundo suspiro:”ah cabron, que me mataste…”.»

A lembrança deste episódio tinha trazido Manuel, até perto da ribeira, ainda a tempo de recordar as consequências daquela peleja luso-espanhola, ao permitirem que o outro dos “carabineros” fugisse, deixando contudo a carga que o Batista havia prometido recuperar, e que já de madrugada haveria de ser entregue, aos de Valência, com o recebimento da respectiva soldada. Só que o fugitivo, havia reconhecido o filho do moleiro Paco Bugalhon, e a retaliação não haveria de tardar…

Quanto ao golias, haveria de acordar cinco minutos depois daquela pedrada do david português, a que todos conheciam pelo ti Mané Batista, e carregar o resto da vida um valente estigma no centro da fronte.

Manuel parara agora em frente das passadeiras do Balcão, olhando fixamente para a outra margem, e o pião zumbidor, não parava de girar na sua cabeça…
(Manuel se fosse vivo, completaria hoje 88 anos de idade)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A ARTE DA CRIAÇÃO



A vida que não passamos em revista, sem reflexão, não vale a pena viver…
(Sócrates).


Nascer é coisa complicada.
Tomemos por exemplo, o nascimento deste espaço de reflexão pessoal ou Blogue, a quem o padrinho, antes do seu nascimento, já havia baptizado com o nome de “retórica”, e de apelido “bugalhónica”, devido ao nome de seu fundador, Bugalhão. Apelido estranho este, a que mais tarde voltaremos, quer pela sua singularidade, quer pela marca com que classifica as pessoas que o transportam.

Mas dizíamos nós que nascer é coisa complicada, ainda a concepção se não deu, e já o rol de preocupações que atormentam o criador parecem não ter fim; que às vezes, dá vontade de um homem nada fazer, para se livrar de problemas. Isto do ponto de vista de quem tem a função ou responsabilidade de dar início ao processo criativo, trate-se ele de lançar à terra uma semente ou rebento de planta, se árvore quiser ver nascer ou plantar; pegar em caneta e papel, para nos referirmos ao método tradicional, ou recorrer às novas tecnologias de meios informáticos, tão na moda nos tempos que correm, se livro ou simples ensaio, como é o caso destas pobres crónicas, quisermos escrever; seja ela, e talvez a mais simples, ou mais complexa, dependendo sempre do ponto de vista de cada um, que é a arte de fazer nascer uma criança. E isto, para nos referirmos apenas, às três funções que dizem competir a um homem, ou mulher, acrescentamos nós, durante a sua passagem por esta vida, que outra, ninguém sabe se terá.

Não iremos deter-nos muito tempo, nem maçar muito o leitor, por enquanto, com esta coisa de ser capital para um homem, o plantar de uma árvore durante a sua vida. E vejam logo, como esta simples afirmação de um autor desprevenido, o coro de protestos que estaremos a levantar por parte dessa classe emergente que são os ecologista ou defensores da natureza. Embora o que o seu criador esteja apenas a afirmar, é que não será agora, talvez mais tarde, não se trata de não ser importante.
Aliás, durante a sua curta infância, o autor deste Blogue, começou por aí, plantando algumas… se é que, se poderia assim chamar, os pequenos arbustos que foi enterrando junto à casa onde cresceu na Abegôa, e que hoje, quando por lá passa, as vê transfiguradas naquilo a que poderemos alcunhar de Árvores.
Mas, sempre acabamos por afirmar, que sobre esta temática da criação vegetal, talvez mais importante do que andarmos por aí, às vezes feitos tolos, em acções infecundas de plantações manhosas, mais valia que preservássemos as que temos, não as destruindo. Porque até hoje, a natureza, nunca careceu da mão humana para fazer reproduzir e nascer as espécies vegetais.

Centremo-nos por agora no essencial desta crónica, cuja função é de garatujar, relacione-se ela com um livro, simples ensaio, ou “posts bloguistas”, salvaguardando as devidas distâncias a que hierarquicamente têm direito.
Concordamos no entanto, que têm muitas coisas em comum, de que é exemplo, a partilha do espaço público. Isto é, concebe um homem uma destas coisas, e rapidamente, ela passa a ser alvo da apreciação por parte dos outros, ou mesmo de sua apropriação por parte de alguns, sobretudo, quando comportam alguma sabedoria ou conhecimento científico.
E não se pense que esta prática é novidade, ou seja, desde o aparecimento das tais novas tecnologias, que põem ao dispor de todos, aquilo que devia ser apenas para alguns. Pois, desde que o mundo é mundo, que há sempre aqueles que se aproveitam das ideias ou conhecimentos alheios, e diga-se, em abono da verdade, que ainda bem, senão às vezes a ninguém aproveitariam.

Não pode até ao momento, o autor deste espaço queixar-se dessa partilha e da falta de críticas positivas e incentivadoras. Pois que, excluindo, a crítica acutilante de Luís, que também leva nas veias um pouco da seiva desta “retórica”, e por isso, tudo está fazendo para que os rabiscos aqui postados lhe não embacem o apelido.
No entanto, não faltam por aí já vozes, embora em surdina, que dizem que parece mal que tal se faça publicamente, apesar de ser evidente, que tal gerador merece algumas reprimendas. Ora será bom aqui afirmar, que este contador de histórias, nada se importa com as críticas que lhe façam, quando justas e construtivas, como têm sido as de filho de Francisco, neto de Manuel, e que na prática vêm servindo e continuarão a servir, a finalidade deste espaço, que convém reafirmar, é a de aprendizagem. Só quem cuida saber muito, pensa já nada ter para aprender e até Sócrates, não o tal, mas o outro, afirmou que “só sei que nada sei…” e era filosofo, ao contrário do tal, que parece saber de mais!
No entanto não nos esqueçamos, que ainda agora estamos no princípio…e que, como diz o outro, no princípio é tudo Bonito. E este já afirmou, para além de todos os elogios aqui deixados, que o criador deste espaço é uma personalidade polémica e pouco simpática; e assim sendo, não será bonito desiludir os amigos.

Mas por agora, manda a boa educação, agradecer as palavras incentivadoras dos diversos leitores que por aqui têm passado, mesmo as daquele, que classificando-se como leitor passivo, Mário, de seu nome, filho de Conceição e neto de Luísa, logo primo de Luís, e que aqui fez quase um poema, a quem nos atrevemos a fazer um desafio: se te correm nas artérias seiva “bugalhónica”, tens que ser “activo”, e vir aqui mais vezes expor as tuas fantasias.
Para remate ficaram, Jorge e Maria; não que tenham algo em comum, a não ser uns pequenos conselhos, que Jorge tem dado a Maria. Jorge, porque ao desejar que a “escrita seja melhor do que antigas tácticas futebolísticas”, está a colocar a bitola muito alta para este humilde criador. Porque nunca esta simples escrita, por muito que evolua, poderá contar com argumentos de peso, como os exibidos por Jorge, enquanto executor dessas tácticas de outros tempos. Maria, porque a empreitada que a espera é árdua, e dificilmente, poderá contribuir para confirmar, ou desmentir Jorge, ao contribuir para que a presente criação, supere a experimentada por Jorge no passado…

Quanto a germinar uma criança, ou se filho se tratar… isso serão coisas para tratar bem lá mais para diante, pois ainda a procissão vai no adro, e Manuel subindo a encosta das giestas floridas…