sábado, 26 de janeiro de 2008

O VÍRGULA...


A casa do Pego Ferreiro



Janeiro é por natureza um mês feio para os urbanos por causa da chuva. Mas um mês fundamental para aqueles que vivem nos campos, e que ainda sabem avaliar os favores do tempo.
Não nos dias que correm, onde as chuvas já pouco importam, mesmo aos rústicos, pois como todos sabemos, o cultivo já teve melhores dias, pelo menos neste país de sol e praia.
No entanto, sempre que ocorre um inverno mais seco e uma primavera um pouco solarenga, quando chega o estio, e nos vemos ameaçados com a amofinação de não nos podermos banhar diariamente à grande e à francesa, lá se lembram os das cidades, que talvez não tivesse sido boa ideia terem andado a exaltar, que tinha sido bom o tempo do inverno, só porque não choveu.



A casa do Pego Ferreiro, e vista do Moinho



Não foi o caso deste ano de 1920, pois que, dos quinze dias que este primeiro mês já leva decorridos, ainda não parou de diluviar. Até parece, que o poder divino se esqueceu de que há pobres que precisam de ganhar o sustento, que não têm uma seara nas costas, que pouco têm com que se cobrir, a não ser, o colmo dos seus casebres à noite, e a copa de alguma árvore durante o dia.

Acordou Teresa, mulher do moleiro, um pouco enjoada, não sabendo se, por noite mal dormida, ou porque terá chegado o dia de parir o ser que em si vem gerando há cerca de nove meses.

Xico, assim se chamava o moleiro do Pego Ferreiro, havia chegado a casa, quando já anoitecia, depois de mais um dia de freguesia, na distribuição dos talêgos de farinha, pelos muitos fregueses por onde haviam passado há duas semanas atrás a recolher o grão, que lhe dera origem.
Como de costume, chegava amontado no seu Macho preferido, que sabia o caminho da casa de cor, trazendo em fila indiana, uns presos aos outros, a sua vasta frota de tires muares. E também como era hábito, era elevada a taxa de alcoolemia que circulava nas suas veias e artérias. Proveito do seu bom trato com muitos dos amigos fregueses, que se orgulhava de ter.



A auto-estrada dos Tires muares


Tivessem os vigias daquela época, efectuado uma daquelas operações de fiscalização e propaganda, tão na moda nos tempos de hoje e, certamente, o moleiro teria que recorrer aos préstimos dos confrades de então, do seu vindouro bisneto Mário, senão quisesse ver a sua concessão de condução de machos e mulas confiscada, para além da elevada coima que lhe assentariam.

Sempre o vinho teve nomeada de tornar as pessoas mais inconscientes e belicosas, sobretudo se ingerido em quantidades exageradas, mas não era esse o efeito produzido com o moleiro Xico Bugalhão. Pois, parecia que quanto mais bebia, mais os seus humores pareciam benfeitorizar.
Só que Teresa, diga-se como quase todas as mulheres, sobretudo, se de esposas se tratar, é que parecia não estar pelos ajustes. E ainda, o moleiro não se havia apeado do seu anjo muar, e já ela irrompia em desmedido pranto, maldizendo e amaldiçoando o precioso néctar, e desejando que este já se tivesse esgotado…, ao que o moleiro respondia: eu bem tento… mas, tu não me ajudas!
Mas em simultâneo, talvez guiada por inspiração religiosa matrimonial, lá o ia amparando até junto do lume, que sempre crepitava na chaminé, para que este pudesse enxugar, em próprio corpo, a roupa ensopada da rega que tinha apanhado.

As pedras do Moinho semi-enterradas

Enquanto Teresa e a filha mais velha Joaquina, procediam à acomodação da frota dos tires muares nas respectivas quadras, e ainda mal o moleiro se havia acomodado junto ao lume, já as suas duas filhas mais novas, Marizei e Genoveva a quem chamavam Conceição, se lhe atiravam para o colo, pois já sabiam que aquele serão seria longo e de muitas histórias e cantilenas.

Sabemos hoje que muitas das estórias e cantilenas infantis, mais não são que uma maneira graciosa de nos moldar social e culturalmente e, não raras as vezes se profere que são verdadeiras e ardis estratégias de instrução sexual. Assim se diz do capuchinho vermelho, da gata borralheira, da branca de neve e sete anões, da carochinha e de outras agora mais hodiernas…
Não podemos extrapolar se seria essa a reflexão pedagógica do moleiro Bugalhão. Tenhamos em conta que eram duros aqueles tempos, tais como os de hoje, em que costumamos dizer que nem tempo temos para nos aliviar de fluidos produzidos pelo organismo ao longo do dia, tal o frenesim em que nos obrigam a viver.

O facto é que quando Teresa, a mãe, e Joaquina, a filha, se preparavam para entrar em casa, depois de cumprida a sua missão de arrumadoras, e sem que lhes tivessem dado qualquer gorjeta, puderam ainda ouvir o final da cantilena com que o moleiro mimoseava as filhas mais novas:
“…encontrei maria a cag…/ p´ra cima de uma travessa/ botê-lhe a capa p´ra cima/ maria cag… depressa”…
Ficou Joaquina mais escarlate que o rubro do pendão português, então recentemente criado, e Teresa à beira daquilo a que futuramente se chamaria, um carga de nervos…

Saídas de água do Moinho do Pego Ferreiro


Tal o baque sofrido por Teresa ao ouvir tal linguajar para as duas inocentes, que desatou novamente no carpido interrompido e vociferando contra a sua desditosa vida…este homem desgraça-se a ele e a mim…, que não me leva o Senhor, deste mundo, etc., etc.…

Levou Xico algum tempo a reagir ao aranzel da mulher. Mas, esta última oração parecia-lhe cair mesmo a propósito. Levantou-se, pousando Marizei com todo o afecto sobre o banco em que antes se encontrava sentado, e dirigindo-se à mulher pegou nela ao colo embaraçada e, tropeçando, dirigiu-se para o quarto contíguo, deitando-a sobre a tosca coberta que cobria a enxerga.
Depois, calmamente, dirigiu-se à mesa da sala, onde jaziam dois redentores em poses de via-sacra e, pegando-lhes com o apreço divino que tais estaturas mereciam, foi colocá-los, um de cada lado da mulher, verbalizando: …vá Teresa, com qual queres ir…com este, ou com aquele…?

À entrada da porta Joaquina, já uma mulherzinha e as duas petizas, riam às gargalhadas. Viu-se a mulher do moleiro naqueles preparos e ante tal cena, sem se saber muito bem por quê desatou também a rir…e, de repente sentiu uma dor intensa, como se algo se lhe arrancasse interiormente.
Depois dessa, outras se seguiram, cada vez mais violentas.

Não cantarolava já agora o moleiro. Num impulso tinha pegado nos dois cristos e sem saber muito bem o que fazer, como sempre acontece aos homens nestas situações, andava de cá para lá com os ditos nas mãos, talvez, quem sabe, suplicando por uma boa hora…
Valeu-lhe a chegada de sua mãe, Teresa Gonçalves, chamada com urgência por Joaquina. Sempre as mães nos chegam nas horas certas e de apoquentação, sobretudo àqueles, que ainda têm a ventura de as ter.

O rio Sever junto ao Moinho, testemunho vivo destas estórias...


Pouco faltava para a meia-noite, quando a avó Teresa, conseguiu retirar com vida das entranhas de sua nora, o segundo filho varão do casal de moleiros, que seria o único, pois o primeiro havia falecido da lua entripal, e a partir daí só germinariam filhas: Maria a que todos conheceram por Júlia, Luísa e Emília de uma só vez, e por fim Vicência.

Há horas de sorte na vida, tal como foi o caso da natividade desta criança; o ter nascido viva e sem deixar sequelas em sua ascendente, numa época em que a mortandade infantil e materna, não era aquilo que é hoje, pois quase sempre, o balanço entre vivos e mortos, quase se igualava a zero.
Teve sorte este moço, ao nascer vivo e valente, para as noites de geada e maresia que iria passar no futuro ao relento, certamente influenciado pelas práticas de preparação para o parto usadas por seu pai. Ou talvez, quem sabe, devido a alguma jura feita aos redentores, na hora da aflição.

Está agora ao colo de sua avó Teresa Gonçalves, mulher fumadora e boémia, de quem se diz, frequentar tascas e tabernas da época, para jogar a bago com os competidores masculinos e claro beber uns copos. Onde seu marido, Zé Bugalhão, levava as crianças, que ficava a velar em casa, para que ali mesmo, fossem aleitadas.
Pode por agora usufruir esse colo e, simultaneamente, da primeira cantilena que esta lhe vai cantando:
“…ai pirroli, pirroli, pirroli/ ai pirroli, pirroli, pirrolé…/ se não queres chocolate, nem aguardente/ bebes café”.

Um mês após este nascimento, e aquando de mais uma distribuição de farinha pela freguesia, apresentar-se-á, o moleiro, no registo civil de Santo António das Areias, dizendo que lhe nasceu um filho e que se chamará Manuel…
Mas não presume o moleiro que, seguramente, por questões hereditárias, o dito virá ser conhecido por estes sítios, não por esse nome, mas por outro, com que será rebaptizado pelos seus camaradas de escola: O VÍRGULA!

Mas para isso, terão ainda de passar mais seis ou sete anos…


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