sábado, 30 de maio de 2015

Memórias com 50 anos...




(Texto actualizado)

Ao primeiro olhar, um observador mais ou menos atento na imagem, dirá que é um retrato de um dia de festa familiar. Não será necessária muita perspicácia, bastará ver o ajuntamento de duas dezenas de pessoas, as vestes que envergam as criaturas, e, um tocador com a sua concertina na parte superior do retrato. Ninguém, no campo, que é o contexto da cena, se engalanava assim há cinquenta anos, requisitava um músico, se não fosse para uma solenidade importante. Atente-se, por exemplo, no homem jovem na primeira fila que até usava uma gravata de galã da época, residia certamente em meio urbano e teria vindo aqui por uma esperança muito especial, sabemos que se chamava joaquim estanqueiro, e já não pertence ao mundo dos vivos ao tempo em que escrevo este artigo. Pela mesma óptica podemos concluir que, os restantes são na sua maioria gente rústica, que ainda vive por ali, apesar das vestes festivas que ostentam. Provavelmente as melhores que tinham nas suas arcas e cabides, e que as vestiram, propositadamente, para uma qualquer celebração.

O céu aparece cinzento, mas que de facto estava azul nesse dia, e ocupa toda parte superior direita da imagem que, em realidade, é a superior esquerda. O local de implantação da casa parece ser o cimo de uma pequena colina que só tem esse mesmo céu por limite. Ninguém dirá que, aqui está uma família em que a maioria dos membros, são descendentes de moleiros de moinhos de água com rodízio, habituados a viver em vales junto às ribeiras e que, ainda há uma década atrás, faziam da transformação do grão em farinha o seu meio de subsistência. O anfiteatro da pose é uma escada com doze degraus que servia de acesso ao piso cimeiro da habitação onde viviam pessoas, o piso térreo tinha os alojamentos dos animais. O corrimão direito dessa escada, à esquerda da imagem, está uma planta que, por mais que fosse cortado, sempre ali crescia novamente com as suas lindas flores roxas , chamávamos-lhe  "goivo" , ao seu lado está uma moça casadoira, de seu nome rosa, como se de propósito. 

Surpreendentemente, a imagem, é dominada pela figura de um homem que ocupa quase, a corpo inteiro, todo o flanco esquerdo da representação. Veste uma camisa que será provavelmente branca, calças escuras com o botão de cima desabotoado para não lhe apertar a barriga que nunca teve. Curiosamente não está a fumar. Ele, que raramente se deixou retratar ao longo da sua vida. Tinha com as fotografias a mesma relação que mantinha com as pessoas: distância e poucas intimidades. Possivelmente aqui, aos 45 anos de idade, foi a terceira vez que se deixou apanhar pela objectiva de uma qualquer kodak. A primeira teria uns dezanove anos, num dia de pescaria na herdade dos pombais ainda em casa de seus pais, na companhia de alguns homens influentes do concelho onde residia; ainda tentou esconder-se, mas foi apanhado pela objectiva. Na segunda vez teria 40 anos e aconteceu na povoação de Torres Novas, onde fazia uma “fega” de colheita de azeitonas, em pose com a sua mulher, filha e filho, para enviar para o seu filho mais velho matar saudades em vez de pretos, nas terras de Angola onde andava a defender a pátria; e agora esta, mostrando uma postura como se fosse profissional da imagem. Sim senhor. Não daria muitas mais hipóteses, no futuro, aos retratistas.

Este homem chamava-se manuel. Foi contrabandista desde os 8 anos de idade, mas também foi moleiro, pescador e trabalhador rural sazonal. Esteve preso em Espanha no pós-guerra civil, mas também em Portugal por ter sido apanhado pela venatória a apanhar peixes no rio para matar a fome. Por esta época era um pequeno agricultor de batatas, feijão, couves; e alguma parca pecuária composta por meia dúzia de galinhas e coelhos que, por essa hora, já alguns estarão em panelas ao lume para servirem de banquete de final de festa. Ainda não arranjou dinheiro para comprar uma vaca leiteira para seu sustento e dos seus, mas isso irá acontecer em breve. Com os rendimentos do leite e das crias, há-de pagar a telescola de seu filho mais novo, e arranjar dois contos de reis para comprar a mobília de sua filha que irá casar daqui a dois anos, e que aqui a vemos, com dezoito anos feitos recentemente: é a primeira moça da direita da imagem, para quem começar a contar de cima.  

Manuel tem à sua esquerda a sua mulher de sempre, luisa era o seu nome. Poderá parecer que tem a sua mão direita pousada no ombro de seu marido, pura ilusão. Ela nunca o faria em público, e ele jamais admitiria tal intimidade, nem que se tratasse de um dia muito especial como era o caso, o serem padrinhos de baptizo do seu primeiro neto. Mesmo atrás de si, ligeiramente à esquerda, está a sua irmã maria, a quem todos tratavam por ti júlia, parece triste e é verdade, o seu filho mais velho anda na guerra, e na guerra mata-se e morre-se. Ela sabe isso.

Ao lado de luísa, está a sua comadre jacinta, que tem logo atrás de si as duas filhas recém-casadas. Recém-casadas é uma forma de dizer porque dormem com homem a que chamam de marido, mas de facto, apenas se ajuntaram a eles, que era o termo que então se usava. A da direita da imagem chama-se maria josé, tem ao colo o seu filho teodoro; ao seu lado direito está a sua irmã mais velha maria, também ela já foi mãe há cerca de cinco meses do rebento dela e do retratista de serviço nesse dia. 

Outra curiosidade da imagem diz respeito à paridade de género que parece ter tido aqui mão divina: a cada homem a sua mulher, como manda a lei do deus aqui dominante. Já que, se bem contarmos, podemos divisar perfeitamente oito varões e oito fêmeas entre mulheres e moças. Existem no entanto quatro crianças de colo na imagem, às quais, pela simples observação, não poderemos atestar se serão meninos ou meninas. No entanto, sabe o autor que, a esse respeito, o tal deus que dizem que tudo o que fez, e faz, ser bem feito, não manteve aqui a regra da equidade que tanto se diz apregoar, e quis privilegiar, como quase sempre, o género masculino, que ficou a ganhar por três contra uma. 

Fica ainda por perceber porque sendo também deus, tradicionalmente, mais reclamado pelos da direita, aqui serão as crianças do centro, o luís, e a da esquerda, a esperança, que estão ao colo de suas mães maria e gertrudes respectivamente, a engrossar a partir desse dia o rebanho dos tementes a deus, quando na igreja da paróquia próxima, receberem o sabor amargo do sal da vida e a santa água benta que lhes escorrerá pelas frontes e as limpará do pecado original. Se se manterão fieis crentes até ao fim das suas vidas, ninguém poderá adivinhar, só deus saberá e, esse, não consta que o tenha dito a ninguém. Já as crianças da ala direita da imagem apenas estão aqui porque tiveram que acompanhar os seus progenitores.

A parte superior do retrato, digamos que a retaguarda do cortejo e como se fosse a sua protecção,  é composta por cinco criaturas do género masculino: quatro adultos e um rapaz. O primeiro da esquerda da imagem era conhecido por chico padeiro, era marido da ti julia; ao centro o já mencionado tocador com a sua concertina, tendo como guarda-costas seu pai joaquim do covão, “ toca também o mê francisco, nã toca? Não sabemos ti jaquim, a gente nunca o ouviu, costumava responder a sua cunhada luísa!” Mas nesse dia tocou e dou para sentir que seu pai tinha razão. E para acabar de compor o ramalhete, duas criaturas que, até agora, nos não mereceram qualquer referência: o homem mais em cima à direita, e a figura enigmática do rapaz que está por de trás de si que mais parece um mastro de bandeira. O homem será certamente o bom romeiro, como na história do frei luís de sousa. Só que aqui, não será o romeiro a responder quando a pergunta lhe for feita “ quem és tu?” O que ouviremos aqui é a voz do rapaz dizendo: “eu ainda não sou ninguém...., mas daqui a cinquenta anos escreverei uma chalaça a descrever esta cena.              


Nota: Obrigado muito especial à Jacinta Bugalhão por ter desenterrado esta preciosidade, onde ela ainda não consta.

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